As bem-aventuranças

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03/06/2020 às 12:12
Marco Vinicius Ropelli e Victória Domingos

Colada no poste por fita adesiva, no mesmo dia a frase foi arrancada (Foto: Marco Vinicius Ropelli)

Costumo caminhar no final das tardes. Coisa pouca, meia hora. É uma caminhada solitária, ouvindo clássicos da música brasileira enquanto sinto a brisa fresca da vegetação que se espalha à volta de três pistas.

Desde que começou a quarentena, mantive essas andadas vespertinas, justamente porque são sozinhas, isoladas, sem que haja contato com ninguém. Agora, porém, não as faço mais. Ao menos temporariamente. Isto porque, a obrigatoriedade do uso de máscaras em espaços de uso coletivo do Estado de São Paulo a inviabilizou, pois sinto minhas narinas e pulmões incapazes de manter-me o fôlego dos exercícios com aquela barreira física de tecido.

Antes disso, entretanto, eu, teimoso rotulado, me deparara com algo, ao menos curioso naquela praça. Alguém, cujo temor, imagino que estivesse grande, dedicou-se a imprimir e colar nos postes da praça a seguinte frase, quase bíblica: “Bem aventurados aqueles que caminham na quarentena, tão logo encontrarão o Senhor. Teimosos 2:19”.

Naquele dia parei, fiz questão de ler outra vez. Primeiro pela criatividade, segundo pelo humor escondido entre as palavras e terceiro pelo sarcasmo, utilizado com precisão cirúrgica. Admirei-me e respeitei aquela atitude quase artística.

No outro dia voltei à praça decidido a fotografar a cena, mas alguém, que não tenha achado tão criativo como eu, já havia arrancado o papel, deixando somente as rebarbas presas à fita adesiva.

É o apóstolo Mateus que conta ao mundo o sermão da montanha, em que Jesus elenca as bem-aventuranças: para cada ação humana, uma recompensa divina.

Aos que são pobres de espírito, deles é o reino dos céus. Os que choram, serão consolados. Os brandos e pacíficos herdarão a Terra. Os que têm fome e sede de Justiça serão fartos. Os misericordiosos terão misericórdia. Os puros de coração verão a Deus. Os pacificadores serão chamados filhos de Deus. Os perseguidos por amor e Justiça, deles é o reino de Deus. Os que caminham na quarentena, tão logo encontrarão o Senhor.

Confesso que não sou religioso, mas, se fosse, a mais nova bem-aventurança pareceria tentadora. Brincadeiras à parte, o idealizador irônico do novo livro bíblico, Teimosos, pode ficar em paz, pois minha parte fiz e estou, permanentemente, entre as paredes do lar.

Em ócio pego-me a pensar o quando é determinante para a história do homem a pandemia que nestes dias o mundo enfrenta. Tudo depois de ler aquela frase que durou menos que um dia no poste desta cidade tão pequena em que vivo, Álvares Machado. Se o nascimento de Cristo dá início ao nosso calendário gregoriano, esta bem-aventurança, que para muitos tem só mal, mas para mim, moldará uma nova sociedade global, não pode ter importância menor do que aquela que muda uma era histórica.

No próximo dia que eu puder calçar meu tênis e partir em direção à praça de caminhada para os trinta minutos de passos embalados em Djavan, Tom Zé, Raul e Ben Jor, policio-me para lembrar-me de que inicio, junto a cada um que sai de casa para os afazeres da vida cotidiana, um novo tempo. Neste dia darei adeus à Idade Contemporânea.

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