Entre memes, hits e polêmicas, fenômeno nas redes questiona os limites entre diversão digital e produção musical humana
Leandro Pinheiro e Marianne Santana
26/09/2025, às 19h
⚠️ Aviso: parte do conteúdo disponível sobre Tocanna não é indicado para menores de 18 anos.
Antes do surgimento da música gravada, os pássaros eram os primeiros cantores, chamando atenção na natureza. Hoje, quem ocupa o palco digital na internet é Tocanna, artista virtual criada por inteligência artificial, que mistura paródias, letras “proibidonas” e memes para conquistar quase 280 mil ouvintes mensais no Spotify. O fenômeno viral nas redes sociais desperta risadas, curiosidade e até debates sobre o papel da IA na música.
Inspirada em um tucano, com a cabeça do animal e corpo humano, Tocanna foi criada em 2024 pelo designer gráfico Gustavo Sali, de 25 anos, que misturou o universo da IA com o que já sabia de design gráfico em uma brincadeira entre amigos, conforme contou em entrevista ao g1.
Tocanna foi uma das primeiras cantoras feitas por inteligência artificial e integra um ecossistema de artistas bichos gerados por IA, um fenômeno que data de 2024, com virais de personagens que resultaram até uma gravadora fictícia, a Matagal Records.
Suas letras são paródias de músicas já conhecidas no sertanejo brasileiro e na cena pop nacional, envolvendo sempre temas como sexo explicito. Só neste ano, Tocanna lançou seis álbuns nas principais plataformas de música.
A artista virtual já possui 194 mil seguidores no Instagram e 137 mil no TikTok, onde se apresenta como “Grammy Winner”.

🎤 Do meme ao streaming
Foi nas redes sociais que o estudante de Marketing e Publicidade, Albano Rodrigues Netto conheceu a artista: em vídeo dela no palco, cantando para vários fãs. Todas as imagens são IA.
“Ela cantando de forma natural me pega muito, acho muito cômico mesmo. A adaptação para São Paulo é fantástica, só um brasileiro para pensar em algo assim”, diz o estudante.

Seu primeiro hit, São Paulo, é uma paródia de Empire State of Mind (Jay-Z & Alicia Keys) e viralizou rapidamente nas redes ao ponto que foi removido de todas as plataformas digitais por ordem do dono da música na última segunda-feira (16/09). A decisão do rapper americano ocorre porque, segundo a cantora, ele quer ser creditado na faixa, conforme publicou O Globo.
Em vídeo de pronunciamento, Tocanna ironiza a situação em entrevista para o portal Leo Dias: “Já esperava a perseguição, por ser uma tucana latina, mulher fazendo música” (veja o vídeo abaixo).
Para Netto, o fato das letras terem um tom sexual e provocativo faz parte da graça. “Acho que ninguém leva a sério e não acredito que vá se tornar um problema. Como se trata de um meme, meus amigos jovens já estão por dentro e tiram sarro comigo”, conta o estudante.
Já a designer gráfica, Isabelle Caroline Ribeiro, de 21 anos, riu, mas não achou graça quando se deparou com mais um conteúdo meme gerado por IA.
“Ela [Tocanna] surgiu em um momento que eu já estava saturada de tantos conteúdos de IA. Me incomoda o fato desses conteúdos viralizarem e não serem apenas uma onda rápida de meme. Eram tantos vídeos com aquela música “São Paulo”, junto a mais vários vídeos de IA, Marisa Maiô, a Gótica de Xique-Xique, Brainrot”, explica.
Crítica à brincadeira, Isabelle não vê qualidade artística nos conteúdos de Tocanna. “Eu nunca tinha imaginado que alguém poderia genuinamente escutar isso no dia a dia, até conhecidos compartilharem que estavam escutando. Algo feito 100% por IA não deveria nem poder ser publicado em uma plataforma como o Spotify”, opina.

🎵Impacto da IA na música
O fenômeno não é novo na indústria da música. O professor universitário na área de Artes Visuais e Música, Everton Tomiazzi, explica que o mundo já viu movimentos semelhantes e outras inovações tecnológicas como no início de ritmos como o rock, pop e disco que lançaram a figura oculta do produtor.
“A mudança crucial com a IA é o grau de autonomia: a tecnologia agora pode gerar não apenas a imagem, mas também a voz, a composição e os arranjos com intervenção humana mínima, escalando esse conceito a um nível inédito”, esclarece o professor.

Segundo Tomiazzi, os direitos autorais são uma das problemáticas, pois as IAs são treinadas com milhões de músicas protegidas, sem licença ou compensação. Os riscos de processo por violação e autoria da própria obra da IA são ambíguas e geram um “vazio jurídico”.
“Não existem leis concretas para isso. Aos poucos estamos integrando isso a nossa sociedade, antes estranhávamos, mas agora é engraçadinho e logo vai ser normal termos cantoras de IA”, afirma.
Tocanna não é a primeira criação virtual a ocupar espaço entre os artistas mais ouvidos do streaming. A banda The Velvet Sundown, inteiramente gerada por inteligência artificial, já havia chamado atenção por emplacar músicas em playlists. Um de seus hits, Dust on the Wind detém a marca de mais de 3 milhões de reproduções no Spotify.
Para Netto, os números mostram que a IA tem conseguido competir de igual para igual com músicos reais. Inovação que, para ele, preocupa. “Ouvi pela primeira vez [a banda The Velvet Sundown] através de uma playlist aleatória. Me interessei, pesquisei sobre os artistas e descobri que não existiam. Como assim aquelas vozes lindas não existem?”, questiona.

🥁 O mercado musical
A crítica a IA também é compartilhada por artistas independentes da cidade. É o caso de Andy Bravos, 23 anos, músico da região que cresceu em uma família de artistas e hoje tenta espaço no cenário musical enquanto também é auxiliar de Polo do Projeto Guri. Para ele, personagens virtuais podem até gerar hits, mas jamais terão o que considera essencial. “Eles não estão no mesmo nível que nós artistas, só por um único motivo: não têm alma”, resume.
Bravos conta que sua relação com a música vem de dentro de casa e carrega uma dimensão afetiva que a tecnologia, não é capaz de reproduzir. “Quem faz música, quem cria músicas, tenho certeza de que é porque ama música, ama viver música”, aponta.

Em Presidente Prudente (SP), o artista sente falta de oportunidades e usa as redes sociais para divulgar seu trabalho. “Não há mais tantos festivais de canto ou show de talentos como antigamente. Por isso hoje em dia eu foco mais em espalhar minha arte pela internet. Acredito que é lá mesmo onde nós podemos e devemos nos mostrar, até podermos subir aos palcos”, conta.
Hoje, ao compor, prefere o pop, mas não abandona o amor pelos rocks clássicos e mantém sua produção autoral como necessidade de vida. “Não importa se pelo resto da minha vida a Tocanna for top 1 em todas as plataformas. Isso não tira meu amor pela música, não vai me fazer parar de cantar, gravar meus covers ou produzir minhas músicas autorais. Eu preciso criar músicas, assim como preciso de oxigênio”, enfatiza.
Seu último lançamento, “Protagonista”, ganhou clipe e espaço no Spotify.
🤖 Tecnologia a favor da arte

O professor Everton Tomiazzi reforça que a IA pode ser uma aliada poderosa, mas não deve substituir o artista. No entanto, a tendência é que cada vez mais personagens virtuais ocupem espaço na música, mas que a convivência saudável depende de transparência e curadoria, garantindo que a autenticidade e a expressão cultural única do artista humano continuem sendo valorizadas.
“Músicos usam a IA para ampliar sua criatividade, enquanto a indústria e plataformas priorizam a transparência, deixando claro o que é IA e curadoria humana que valorize a autenticidade e expressão cultural única”, recomenda o profissional.
Apesar da utilidade de certas automações, para o artista Andy Bravos, nada substitui o toque humano: “Nenhuma automação vai colocar o nome da minha namorada nas minhas letras. É o sentimento que vem de mim que importa e é isso que os ouvintes precisam: identificação. É isso que transforma uma música de som em algo que faz alguém se levantar de manhã”.